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Escolas militarizadas triplicam e unem governos de direita e esquerda

O número de escolas públicas militarizadas triplicou nos últimos cinco anos no Brasil.

A expansão ocorreu tanto em governos de esquerda quanto de direita, com apoio de pais e responsáveis, sob argumento de reforçar a disciplina escolar.

Há 792 colégios estaduais e federais espalhados pelo país com gestão militar completa ou parcial, segundo levantamento inédito do UOL — em 2018, eram 230.

Isso corresponde a 4% da rede estadual, alcançando 555 mil alunos.

Vinte e três estados e o Distrito Federal já têm escolas públicas militarizadas. O Paraná lidera a lista. São Paulo ainda briga para adotá-las.

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Imagem: Arte/UOL
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Em sala de aula, segundo a maioria dos entrevistados, não há mudança pedagógica. A mudança é comportamental.

No dia a dia, alunos usam fardas, batem continência, cantam o hino nacional e têm aulas inspiradas em "educação moral e cívica", disciplina obrigatória em escolas públicas brasileiras durante o regime militar, hoje fora da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

A depender do modelo adotado — não existe sistema único no país —, estudantes são classificados segundo o comportamento e o desempenho.

Os melhores podem virar "xerifes, chefes ou fiscais de sala", os antigos representantes de turma perante professores e diretores.

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Imagem: Reprodução

'Jabuticaba' que virou filão

Essa configuração só existe no Brasil e divide opiniões.

Nenhum país com resultados destacados em política educacional adota um padrão similar a essa nova 'jabuticaba' brasileira. Militarizar funcionamento de escolas não é característica nem de governos próximos do autoritarismo, como a China. Fernando Abrucio professor e pesquisador da FGV-SP

Educadores criticam o que chamam de "pedagogia de quartel" e a contestam na Justiça — o STF ainda decidirá sobre a constitucionalidade do ensino.

Já políticos e empresários veem na fórmula um filão, a ponto de o fenômeno alcançar as escolas municipais, a partir de parcerias com forças como a Polícia Militar, e também colégios particulares.

Na Bahia, por exemplo, 56 mil alunos da rede municipal estudam em escolas militarizadas.

A implementação começou em 2018, no governo do petista Rui Costa, hoje ministro da Casa Civil, que autorizou convênios com a PM.

Em 2019, já havia 60 cidades conveniadas. A Bahia tem ainda 16 escolas estaduais militarizadas e um colégio do Exército.

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Paraná lidera

O Paraná lidera o processo de militarização do ensino no Brasil nas redes pública e privada.

Até 2018, o estado possuía duas escolas da PM, originalmente militares e subordinadas à Secretaria de Segurança Pública. Hoje, são 312 colégios cívico-militares na rede estadual.

As unidades atendem a mais de 192 mil alunos, que seguem uma conduta que veta corte de cabelo no estilo moicano, tererê e piercing.

Segundo o manual elaborado pela gestão Ratinho Júnior (PSD), o uniforme, que não pode estar amassado ou ser personalizado, é checado diariamente pelos monitores militares.

"Por meio de um aplicativo, eles concedem ou tiram créditos dos alunos de acordo com o comportamento", explica o secretário estadual de Educação, Roni Miranda Vieira.

O gestor afirma que o manual de conduta é apresentado aos pais e alunos no primeiro dia de aula.

Colégio cívico-militar em Curitiba
Colégio cívico-militar em Curitiba Imagem: Silvio Turra/Seed-PR

Filão só cresce

"O programa de incentivo criado no governo Bolsonaro [Pecim, o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares] foi cooptado por governadores e prefeitos de todo o país, que passaram a abrir formatos próprios", conta o professor Eduardo Santos, do Instituto Federal de Goiás.

O modelo já virou promessa de campanha nas eleições municipais. Em São Paulo, por exemplo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que tenta a reeleição, declarou intenção de aderir ao formato.

Apenas Espírito Santo, Sergipe, Rio Grande do Norte e São Paulo não oferecem ensino militarizado nas redes estaduais ou não possuem colégios sob o comando da PM.

No estado mais rico do país, a decisão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de implantá-lo foi suspensa pela Justiça.

Segundo o desembargador Figueiredo Gonçalves, o programa paulista "parece legislar" e invadir a competência da União.

De acordo com o desembargador, a suspensão deve vigorar até que o STF julgue uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre o tema.

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Colégio pago militarizado

A procura dos pais explica em parte o sucesso de uma rede privada fundada em 2018.

Com sede em Curitiba, o Colégio Vila Militar, que se apresenta como o primeiro do país a adotar o ensino militar fora da rede pública, atende 3.478 alunos em oito unidades conveniadas.

No ensino fundamental, as mensalidades custam R$ 1.131.

Vende-se a lógica de que a disciplina vai proporcionar a qualidade da educação, via obediência, e sem alguns dos debates indesejados, sobre racismo e sexualidade, por exemplo Catarina de Almeida Santos pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília), sobre os atrativos oferecidos a quem pode pagar

Para se tornar "militar", colégios particulares contratam policiais aposentados. Na prática, acabam competindo com a rede pública, que também seleciona pessoal da reserva para a função de monitores.

No Paraná, já são 635 PMs empregados em escolas. Por mês, cada um deles recebe R$ 5.500. O salário-base de um professor na rede é de R$ 6.100.

"Essa disciplina oferecida na escola ajudou meu filho a ter mais responsabilidades. Ele mudou pra melhor em casa também, onde cuida das suas coisas agora e até passa a farda que usa como uniforme", diz Nelcimary da Silva Miranda, mãe de João Victor, 12.

A criança cursa o sexto ano do ensino fundamental no Colégio Estadual Cívico-Militar Miguel Nassif Maluf, que fica em Wenceslau Braz, a 287 km de Curitiba.

Ele foi transferido para a escola em fevereiro. Em 2023, frequentava uma unidade regular da rede e, segundo a mãe, adaptou-se "muito bem" ao modelo.

"Semana passada, ele esteve como 'chefe da turma', um orgulho pra gente", conta Nelcimary.

Modelo une direita e esquerda

Criado por D. Pedro 2º, o ensino militarizado no Brasil se desenvolveu de forma contínua desde 1889, ano da proclamação da República.

O Exército comanda 15 colégios no país, mas o formato deu um salto na gestão Bolsonaro, quando ele lançou o Pecim em 2019.

A ampliação seguiu mesmo após o fim do programa por ordem do presidente Lula, que é contra o modelo e o gasto derivado dele: R$ 98,3 milhões, apenas para pagamento de monitores militares entre 2020 e 2022.

Historicamente, foi Mato Grosso, ainda nos anos de 1990, que levou as forças da caserna para dentro das escolas públicas.

Mais recentemente, o Distrito Federal e estados da região Norte, como Rondônia e Roraima, também se juntaram à lista.

Segundo o pesquisador Eduardo Santos, a militarização subverte o modelo pedagógico ao aderir a práticas dos quartéis.

"É um modelo que desconfigura o papel da escola. Quem não se encaixa é convidado a sair", afirma.

A secretária de Educação de Goiás, Fátima Gavioli, rebate.

"Entendo as críticas, mas a disciplina dá resultado. Tem que seguir as regras, caso contrário o aluno é transferido. Mas isso é raro, posso garantir. São três candidatos disputando uma vaga aqui, em média", diz.

Goiás tem hoje 82 unidades com gestão militar, com mais de 75 mil matrículas - cerca de 15% do total de alunos da rede.

Em Roraima, esse porcentual é de 30%.

Após intervenção do Ministério Público, em 2019, a secretaria não faz mais seleção de estudantes nem cobra pela farda usada como uniforme.

A entrada no sistema ocorre por sorteio transmitido via YouTube.

Aluno empreendedor

Só vejo vantagens. O conteúdo programático é o mesmo dos demais estabelecimentos e, além disso, os alunos têm acesso a conteúdos relacionados à ética, cidadania, empreendedorismo e empatia. Ana Paula Vidotto professora

Seu filho, Vitório Vidotto de Toledo Vettore, 17, estuda em um colégio cívico-militar privado em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo.

A unidade adota o modelo de ensino da Defenda PM, entidade de oficiais da polícia paulista que presta serviços na área educacional.

A associação, que afirma não ter fins lucrativos, informou que sua intenção é disseminar valores e princípios éticos na sociedade.

Eduardo Santos explica que o apoio de parte dos pais se explica pelo fato de escolas militarizadas, por receberem mais dinheiro, apresentarem melhor estrutura que as demais, na contramão da precariedade da rede regular.

"Isso passa uma sensação para os pais de que apenas essas escolas militarizadas funcionam."

O professor ainda ressalta que parte delas fazem seleção de alunos, o que também colabora para a aprovação da comunidade e para a melhora dos índices de aprendizagem.

Colégio militar em Brasília
Colégio militar em Brasília Imagem: Acácio Pinheiro/Agência Brasília

STF vai julgar se formato é constitucional

A constitucionalidade do ensino militar praticado pelas redes pública e privada ainda será julgada pelo Supremo Tribunal Federal.

Há expectativa de que a ação apresentada pelo PT, PSOL e PCdoB contra o programa adotado pelo governo do Paraná possa ganhar repercussão nacional.

Instado a se manifestar pelo relator da ação, ministro Dias Toffoli, a Advocacia-Geral da União classificou os colégios cívico-militares como "inconstitucionais".

A AGU defende que o modelo seja descontinuado de forma gradual, conforme determinado pelo governo Lula. Não há prazo definido para uma decisão.

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